Autora: Raquel Cunha (Terapeuta Ocupacional)
O tema Alimentação tem surgido nas comunidades médica, de pais e de educadores com maior relevância e frequência. Atualmente, valorizam-se as alterações e dificuldades alimentares na infância, pois sendo a criança uma individualidade com especificidades únicas, valorizando fatores biológicos, psicológicos e sociais num modelo biopsicossocial, e dificuldades a este nível podem comprometer o seu desenvolvimento. A intervenção na alimentação tem evoluído de tal modo que, neste momento, é imprescindível uma equipa multidisciplinar para tratar estes problemas.
As perturbações alimentares são descritas há muitos anos pelo DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) e outros manuais de diagnóstico, como CID (Classificação Internacional das Doenças). Anteriormente, as perturbações alimentares eram maioritariamente associadas a alterações psicológicas (depressão, ansiedade, POC, etc.) na adolescência e idade adulta. Quando apareciam na primeira infância, nunca eram identificadas como problema principal, mas antes como consequência de algo envolvente, nomeadamente um défice em alguma competência, ou uma consequência de alguma patologia.
Neste contexto, é importante despistar se este comportamento é derivado de défice em alguma área ou, simplesmente, uma fase do desenvolvimento.
A alimentação começa a desenvolver-se, ainda in-utero, o paladar torna-se funcional no terceiro trimestre de gestação, quando o feto sente os diferentes sabores da alimentação da mãe. A evitação e a restrição alimentar associadas a ingestão insuficiente ou falta de interesse em alimentar-se desenvolvem-se mais comumente na fase de lactente ou na primeira infância e podem persistir na idade adulta. A literatura é escassa a respeito das consequências a longo prazo, pelo que é fundamental uma intervenção o mais precocemente possível e especifica para cada criança.
Os termos mais ouvidos e confundidos, hoje em dia, são Seletividade Alimentar (perturbação de ingestão alimentar evitante/restritiva) e Anorexia Fisiológica, e é a esse esclarecimento que me proponho hoje.
A Seletividade Alimentar, entra na Classificação do DSM 5, tendo a denominação de Perturbação alimentar restritiva/evitante (ARFID), no capítulo das perturbações alimentares – “As perturbações alimentares são caracterizadas por uma perturbação persistente na alimentação ou no comportamento relacionado à alimentação que resulta no consumo ou na absorção alterada de alimentos e que compromete significativamente a saúde física ou o funcionamento psicossocial.” DSM 5). (ASHA, 2013)
A Seletividade Alimentar/Perturbação alimentar restritiva/evitante (ARFID), é uma das perturbações alimentares menos compreendidas, não havendo guidelines para o seu tratamento. As crianças com ARFID demonstram falta de interesse na alimentação, restrição e evitamento e só aceitam uma dieta limitada, considerando características sensoriais dos alimentos (aparência, cor, odor, textura). Sendo considerada uma perturbação que compromete o funcionamento e desenvolvimento normal da criança, assenta sobre vários critérios para o seu diagnóstico, nomeadamente a perda de peso significativa; deficiência nutricional significativa; dependência de alimentação enteral (sonda nasogástrica) ou suplementos diatéticos; interferência marcante no funcionamento psicossocial (incapacidade de participar de atividades sociais, como fazer refeições com outras pessoas) e a restrição alimentar: não pode estar associada a questões religiosas e culturais; não pode ser explicada por preocupação excessiva acerca do peso ou da forma corporal; não é atribuível a uma condição médica concomitante ou melhor justificada por outra perturbação mental. Quando a perturbação alimentar ocorre no contexto de uma outra condição ou perturbação, é considerada ARFID se a sua gravidade excede a habitualmente associada à condição ou perturbação e justifica atenção clínica adicional.
Os estudos nesta área continuam a ser escassos e de difícil interpretação devido à elevada diversidade de perfis dentro da seletividade alimentar causada pela especificidade de cada pessoa, contudo são cada vez mais os que associam as alterações sensoriais e as características do alimento rejeitado/tolerado. São referidos quadros de sensibilidade extrema à aparência, cor, odor, textura, temperatura ou paladar do alimento, podendo até manifestar-se uma recusa em comer determinadas marcas de alimentos ou intolerância ao cheiro do alimento que está a ser consumido por outros. Assim, esta perturbação pode ser devido: a alterações sensoriais (hiperrepsonsividade olfativa, defensibilidade táctil); a uma resposta a acontecimentos com experiência adversa como engasgamento, exames clínicos (ex.; endoscopias), utilização de sondas nasográstricas, refluxo e vómitos repetidos.
As consequências de uma perturbação alimentar restritiva/evitante afetam a criança e a sua família, uma vez que provocam limitações funcionais e associadas ao desenvolvimento: podem prejudicar o desenvolvimento físico; potenciar dificuldades sociais; e podem ter um impacto negativo significativo no funcionamento familiar. Em alguns indivíduos, a perturbação alimentar restritiva/evitante pode preceder o aparecimento da anorexia nervosa.
As crianças com Seletividade Alimentar/Perturbação alimentar restritiva/evitante (ARFID) tendem a apresentar quadros de comorbilidade como perturbações de ansiedade, perturbação obsessivo-compulsiva, perturbação de défice de atenção e hiperatividade e perturbação do espetro do autismo.
A intervenção para estes casos ainda não tem guidelines definidas, ainda pouco se sabe relativamente à abordagem mais eficaz. O ideal seria uma intervenção multidisciplinar, considerando as especificidades de cada caso, desde terapia sensorial, terapia cognitivo-comportamental, nutrição, terapia da fala, etc., com o objetivo maior de minimizar o défice nutricional e relações interpessoais, para promoção do desenvolvimento e funcionalidade.
A anorexia fisiológica não é uma perturbação “verdadeira” e permanente, porém em algumas crianças a sua duração é mais longa. Na maior parte das vezes surge entre os 12 e os 18 meses de idade, podendo durar ocorrer entre o 1 e os 5 anos de idade. Naturalmente por esta idade acontece uma diminuição do apetite, devido à desaceleração no seu crescimento e sobreposição do interesse pela enormidade de estímulos e descobertas que a criança tem do meio envolvente em detrimento do alimento. Na anorexia fisiológica não há alteração do estado nutricional mas a criança pode ficar cerca de 3 ou 4 meses sem qualquer ganho de peso, não há outros dados referentes a distúrbios psíquicos da criança, da mãe, do vínculo entre mãe e filho, ou de problemas sociais relevantes.
Se perdurar, a anorexia fisiológica, pode desencadear restrições a nível alimentar, assim a intervenção, o acompanhamento e/ou aconselhamento neste tipo de casos é também fundamental para o favorecer um desenvolvimento saudável da criança.
Bibliografia:
Costa, R. (2017). Quadros alimentares restritivos e evitantes na infância: frequência e características individuais e familiares associadas. Tese de Mestrado em Mestrado Integrado em Psicologia. Escola de psicologia – Universidade do Minho, Braga.
Madeira I.,Aquino L. (2003). Difficulties in the management of sleep and eating disorders. Jornal de Pediatria – Vol.79, Supl.1.
American Psychiatric Association (2013). DSM 5: Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (5º Ed.). Lisboa: Climepsi Editores.
