Autora: Luísa Hedviges Araújo (Terapeuta da Fala, Técnica de Intervenção Precoce)
Será que todas as crianças com Perturbação do Espetro do Autismo (PEA) apresentam dificuldades de Linguagem? É esta a reflexão proposta com base na minha experiência prática, conceções teóricas e alguns estudos sobre este tema.
O diagnóstico da PEA, ou a identificação de algumas caraterísticas deste espetro nas crianças, ocorre felizmente de forma cada vez mais precoce, o que leva as famílias a procurarem ajuda e consequentemente intervenção terapêutica. É consensual entre diferentes autores a necessidade de identificar e intervir precocemente em crianças com PEA e suas famílias (Landa, 2007; Rapin, 2005; Siegel, 2008). Na prática, o atraso no desenvolvimento da linguagem, associado à falta de interesse social ou interações sociais incomuns (ex.: puxar pessoas pela mão, evitar contato ocular) constitui um dos primeiros sintomas de PEA e representa um dos principais motivos pelos quais as famílias procuram a Terapia da Fala. O facto de a criança não falar, ou falar pouco pelos 2 anos de idade, é muitas vezes a primeira preocupação e funciona simultaneamente como a “porta de entrada” para iniciar um processo de intervenção terapêutico mais abrangente, essencial para potencializar o desenvolvimento global da criança. Nestas idades precoces, em associação à questão da ausência das “primeiras palavras”, surgem comummente outras dificuldades como: a resposta ao nome, compreensão de vocabulário familiar e a resposta a pedidos simples do adulto.
No sentido de compreender melhor a PEA, importa referir que esta perturbação é caraterizada por défices na comunicação social e pela presença de padrões de comportamento e interesses restritos e repetitivos. Estas caraterísticas devem observar-se nos diferentes contextos de vida da pessoa com PEA, podendo traduzir-se em necessidades de apoio e níveis funcionais distintos. O DSM 5 (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders 5), um dos manuais de Diagnóstico de referência na prática clínica, trouxe algumas alterações no que respeita às PEA, nomeadamente: o nome Perturbação Global do Desenvolvimento é substituído por PEA; deixam de ser mencionadas as subcategorias, passando a existir uma variação tendo em conta a gravidade da perturbação (nível 1, 2 e 3); os três grupos de critérios de diagnóstico do DSM IV-TR são reduzidos para dois (1) Défices persistentes na comunicação social e (2) Padrões de comportamento, interesses ou atividades restritos e repetitivos, deixando de ser mencionado o atraso de desenvolvimento da linguagem como critério de diagnóstico (American Psychiatric Association [APA], 2013).
O desenvolvimento da comunicação e linguagem na PEA é caraterizado por uma grande variabilidade dentro do espetro, podendo ir desde graves limitações na comunicação verbal e não verbal, até a uma linguagem muito próxima do desenvolvimento típico. Esta caraterística pode ajudar a compreender a opção da retirada do atraso de linguagem dos critérios de diagnóstico. Considero, contudo, que este aspeto não pode em nenhum momento permitir a “desatenção” dos profissionais e famílias para a linguagem e para a estreita ligação entre o desenvolvimento da comunicação e linguagem. Na minha prática encontro efetivamente crianças com PEA que não apresentavam sempre um atraso efetivo em todas as competências linguísticas, sendo este aspeto visível aquando da realização de uma avaliação padronizada, pela aplicação de testes de linguagem aferidos para a população portuguesa. A ausência de dificuldades é mais comum quando nos debruçamos nas subáreas da semântica, morfossintaxe e fonologia. Mantém-se comum a todas as crianças as dificuldades ao nível da pragmática, que interferem com o uso funcional e adequado da linguagem nas diferentes situações e contextos. Importa ainda realçar o facto de, ao contrário do que ocorre no desenvolvimento típico, em que o desenvolvimento da linguagem compreensiva antecede o desenvolvimento da linguagem expressiva, encontrar um grupo significativo de crianças com PEA, que já desenvolveram linguagem verbal oral e demonstram um desfasamento entre o desenvolvimento da compreensão e expressão, revelando dificuldades mais significativas na linguagem compreensiva, nomeadamente na compreensão de pronomes pessoais e possessivos, conceitos mais abstratos, frases coordenadas e subordinadas, compreensão de questões e dos diferentes pronomes interrogativos.
Relacionando a prática com a investigação, mesmo não constituindo um critério de diagnóstico, verifica-se que o atraso de desenvolvimento da linguagem nas crianças com PEA é muito comum e documentado em vários estudos. Estes estudos apontam também no sentido de que o desenvolvimento da linguagem compreensiva se encontra geralmente mais comprometido (Luyster, Lopez, & Lord, 2007; Volden et al., 2011; Weismer, Lord, & Esler, 2010) e os défices pragmáticos são comuns a todas estas crianças (Eigsti, Marchena, Schuh, & Kelly, 2011). São ainda mencionados défices sintáticos, morfológicos e semânticos (Martins, 2011; Tek, Mesite, Fein, & Naigles, 2013) assim como dificuldades na fonologia, com especial destaque para os aspetos da prosódia (Tager-Flusberg, Paul, & Lord, 2005; M. Filipe, Frota, Castro, & Vicente, 2014).
Como já referido, as dificuldades sociais e de comunicação das crianças com PEA dificultam a sua aprendizagem, e sabemos que uma grande parte da aprendizagem de linguagem ocorre através da interação social com adultos e pares. Os modelos psicolinguísticos do desenvolvimento representam a base para a compreensão da aquisição da linguagem e uns privilegiam mais os aspetos formais da linguagem, outros debruçam-se mais sobre aspetos cognitivos e pragmáticos. O modelo cognitivo baseia-se na análise da estratégia que a criança usa para aprender linguagem e defende que não é possível abordar separadamente linguagem e cognição. Assim, para aprender linguagem, a criança usa a função simbólica, produto do seu desenvolvimento cognitivo. Por outro lado, iniciado o processo de aquisição, a linguagem contribui significativamente para o desenvolvimento cognitivo da criança. O modelo interacionista, enfatiza a linguagem como instrumento de cognição e de comunicação, abordando a importância da sua organização, mas também dos contextos onde ocorre (Narbona, 2005). Na linha do modelo interacionista, Tomasello (2003) apresenta a teoria para a aquisição da linguagem baseada no uso, onde aproxima a dimensão semântica da dimensão funcional e defende que a estrutura (gramática) emerge do uso. Nesta perspetiva, a pragmática representa a área primária para o desenvolvimento da comunicação humana. Segundo o autor, as crianças comunicam muito antes de adquirir palavras e são capazes de compreender o seu papel e o papel do outro na comunicação. As primeiras palavras são aprendidas com base na sua função e a criança com cerca de 1 ano, tem um conjunto de capacidades cognitivas que lhe permitem fazer leitura de intenções dos outros falantes e criar esquemas linguísticos abstratos (Tomasello, 2008). Refletir sobre estes aspetos e compreender o desenvolvimento da linguagem ajuda-nos a perceber o impacto que algumas questões podem ter no desenvolvimento da crianças com PEA, mais especificamente no que respeita à comunicação, interação, linguagem e cognição.
Em suma, entendo que conhecer o processo de desenvolvimento da linguagem na criança e a relação deste com as outras áreas do desenvolvimento, é essencial para melhorar a intervenção terapêutica. Identificar de forma clara e precoce todas as potencialidades e necessidades das crianças com PEA, assim como quais os melhores caminhos e estratégias para otimizar o seu desenvolvimento é, sem dúvida, um grande desafio, mas também um compromisso profissional permanente.
