Autora: Raquel Bártolo (Terapeuta Ocupacional)
Os Terapeutas Ocupacionais (TO) são os profissionais de saúde que se dedicam a compreender e apoiar a participação e o envolvimento das pessoas nas suas ocupações diárias. A nível pediátrico a sua função é habilitar a criança a desempenhar, de forma satisfatória, as suas ocupações, de forma a promover a sua saúde e bem-estar. O TO avalia o desempenho da criança, encontra os fatores que influenciam positivamente e os que restringem a sua participação, e desenha um plano de intervenção individualizado de atividades significativas que permitam melhorar as suas capacidades e suportar o envolvimento nas suas ocupações.
Uma das Atividade da Vida Diária (AVD´s) com impacto direto na independência, participação social e qualidade de vida da criança é a utilização da sanita, incluindo realizar as transferências de e para a sanita, manter a posição na sanita, controlar os esfíncteres e limpar o corpo e a prévia aquisição da capacidade de despir e vestir a roupa.
A aquisição do controlo esfincteriano é considerada um marco importante da infância. Diz-se que a criança adquiriu o controlo dos esfíncteres, quando é capaz de identificar quando tem vontade de fazer xixi ou cocó e controla a sua saída até que esteja num local adequado para fazê-lo. Este processo de controlo, embora pareça simples e natural, é extremamente complexo e resulta do amadurecimento de mecanismos neurológicos, fisiológicos, motores e emocionais. Assim sendo, é clarividente que, para que o desfralde ocorra, o corpo da criança tem de estar preparado, com o amadurecimento de muitos sistemas, sobretudo dos esfíncteres, sendo, portanto, um processo maturativo e não aprendido. Já o comportamento de utilizar a sanita/pote, esse sim, é treinável. E é na deturpação da relação entre os dois que podem surgir os problemas, pois podemos estar a treinar o comportamento antes de o corpo estar preparado!
Na minha prática diária, muitas vezes surge a questão, por parte dos cuidadores, relativa à idade expetável para as crianças deixarem a fralda. A margem para adquirir o desfralde é muito ampla. Se realizarmos algumas pesquisas deparamo-nos com diversas informações, o que mais uma vez comprova o quão subjetivo é este tema. Estudos referem que a maturação normalmente decorre entre os 18 meses e os 6 anos. Alguns estudos referem que por volta dos 2 anos e meio a maioria das crianças pode ser completamente continente e não usar fraldas durante o dia, e que aos 3 anos têm controlo noturno, sendo que apenas uma pequena percentagem de crianças não consegue ter controlo noturno até os 5 ou 6 anos de idade (enurese noturna). Outros indicam que, havendo um desenvolvimento normal, o expectável é as crianças deixarem de precisar da fralda durante o dia até por volta dos 4 anos, e por volta dos 6 anos à noite. Na minha opinião profissional, sendo o desfralde um processo maturativo e não aprendido, um processo natural, individual e não dependente da intervenção dos adultos para o guiar, com um timing exclusivamente pessoal, é normal que não se consiga definir uma idade específica para que tal aconteça. Não se consegue nem se deve fazê-lo! Existem estudos que relatam que, crianças que são expostas ao desfralde precocemente, isto é, sem o amadurecimento dos mecanismos supramencionados, têm maior probabilidade de vir a sofrer e desenvolver problemas de incontinência urinária e gastrointestinais a curto, médio ou longo prazo.
No nosso sistema educativo estão enraizadas diversas crenças erradas sobre o processo fisiológico que resulta no desfralde. Muitos pais procuram-nos preocupados com o facto de os seus filhos já terem 3 anos e ainda não se mostrarem disponíveis para retirar a fralda, outros porque os seus filhos vão entrar para o jardim de infância, onde é requerido que tenham o desfralde feito. Estas visões, transmitidas aos cuidadores, de um desfralde coletivo e como critério de admissão, não têm em consideração as necessidades e o processo de desenvolvimento das crianças. Um desfralde saudável guia-se pelos sinais da criança e não pelos sinais do tempo.
O que podemos e devemos então fazer? O papel do adulto no processo de desfralde é o de preparar um ambiente seguro e motivador, dar o exemplo e saber esperar e acompanhar a criança com respeito. Devemos saber esperar sem expectativas, sem apressar nem forçar, sem pedidos para ir ao wc, sem negociações, punições ou recompensas. Devemos dar o exemplo, permitindo à criança explorar a sua curiosidade pela forma como os adultos fazem xixi e cocó, convidá-la para fazer parte dos momentos de cuidado dos adultos, deixá-la observar e responder às perguntas de forma simples e concreta. Devemos preparar o ambiente, disponibilizando um pote, um redutor de sanita e um degrau para o apoio dos pés.
Contudo, e mesmo tendo isto em consideração, é importante ressalvar que muitas crianças, principalmente crianças com alterações no desenvolvimento, continuam a apresentar dificuldades em realizar o desfralde, muitas vezes pelo resultado de uma interação de processos fisiológicos, sociais, comportamentais e sensoriais. Por exemplo, há crianças que podem não ter uma perceção e modulação sensorial adequada, não sendo capazes de perceber a necessidade de evacuar ou ser tolerantes à sensação de evacuar, componentes necessários para uma defecação normal. Outras, podem apresentar medo e ansiedade face a eventos traumáticos vivenciados durante os primeiros anos de vida (ex: muitas idas ao hospital para exames invasivos ou tratamentos de obstipação) e recusar entrar na casa de banho e/ou sentar na sanita. Outras, quando forçadas ao desfralde e expostas ao medo e angústia, passam a reter as fezes. A defecação dolorosa que a retenção provoca resulta muitas vezes na recusa de ir à casa de banho, ou em casos mais graves, fobia às fezes.
Visto que a origem destas dificuldades pode ser resultado de uma interação multifatorial com comportamentos simultâneos e muitas vezes não facilmente diferenciados, e tendo em conta o potencial limitador na participação ocupacional, torna-se fulcral compreender, analisar, identificar e abordar de forma específica cada vertente a fim de conseguirmos ajudar a criança a responder de forma mais adequada aos seus sinais corporais e participar nas suas rotinas de higiene sanitária. Para tal é necessário recorrer a tratamento combinado com uma equipa multidisciplinar, onde o Gastroenterologista (Problemas Digestivos – exames e tratamentos), Nutricionista (Alimentação – dietas especiais e gestão da Flora intestinal), Psicólogo (Emocional/Comportamental – Traumas, Comportamentos rígidos e desafiantes), Fisioterapeuta (Controlo dos Músculos Pélvicos) e Terapeuta Ocupacional (Discriminação e Modulação Sensorial) têm um papel muito importante.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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